sábado, 28 de fevereiro de 2009

XXXIX

Foi assim que nos conhecemos.

Ela me atropelou. Nos primeiros instantes eu não percebi bem. Bati a cabeça no meio fio e, possivelmente, fiquei desacordada alguns segundos. Quando voltei a terra a primeira coisa que vi foram pernas. E um indescritível scarpin preto. Pisquei os olhos novamente e vi a magrela. Estava torta. Quase tive outro desmaio. Me levantei cambaleante e vi seu rosto pela primeira vez. Descarreguei todos os impropérios que vieram a minha mente. Só faltou chamá-la de puta. E seus olhos me fitaram enquanto isso.

Ela falava no celular. Queria uma ambulância. Ao redor curiosos se amontoavam. E me senti humilhada. A magrela do meu coração ali, torta. E ela ali, no alto dos seus 1,70m com o indescritível scarpin preto.

Me neguei a ir ao hospital em uma ambulância. Iria com dignidade. Ela se ofereceu pra me levar. E a magrela? Enfiei torta mesmo no carro dela e a fiz largá-la em casa. Mais tarde eu cuidaria de sua saúde.

No caminho ela se desculpou. Minhas pernas estavam esfoladas e eu sentia uma dor horrível no peito. Nunca havia quebrado uma costela. E pensava que só podia ser uma costela. Mas afinal, como se recuperava uma costela?!?

Eu só sentia o perfume dela dentro do carro. Observava todos os seus movimentos mesmo com a raiva corroendo meu coração. Ela gesticulava enquanto falava e se justificava.

Saldo: duas semanas de repouso e a magrela em reparos. Claro, fiz com que ela pagasse. E ao final das duas semanas eu já a chamava de puta, enquanto ela gemia na minha cama. Com o indescritível par de scarpins pretos.




sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Silêncio.

O telefone Toca.

- alô.
Silencio. Segundos depois uma voz indecisa.
- Oi.
Silencio novamente. Aquela voz. Seria verdade? A voz indecisa responde novamente.
- Oi.
- Oi.
Sim, era aquela voz. Imediatamente seu coração gritou. Berrou. No silencio do fone, duas almas se encontravam.
- Desculpa te ligar. Eu não deveria. Mas queria te falar umas coisas. Engasgadas, entende?

Sim. Ela deveria entender. Coisas engasgadas? Todo mundo tem coisas engasgadas em um ou outro momento da vida. Engasgos e tormentos.
Ela não respondeu. Silencio novamente. Deus, aquela voz novamente? Há quanto tempo não a ouvia? E porque seu coração bradava gritos de protesto? Ou eram gritos de satisfação que não poderiam ser controlados?
Ao fundo uma música começou a tocar de repente. Sua melodia suave interrompia o silencio. Ela se espichou e abaixou o volume. Ela queria o silencio.
- Eu preciso dizer. Não sei se você vai ouvir. Mas eu preciso.

Medo. Medo de ouvir? Medo daquela voz que já havia sussurrado em seu ouvido coisas boas em momentos outrora bons. O que viria a seguir? O som surdo do telefone sendo desligado era uma opção. Mas qual seria o sentido daquelas palavras ao vento, assim, de repente, que não o reencontro?
- Eu gosto de você. Tenho pensando em você nos últimos dias com bastante freqüência. Isso não acontecia há algum tempo já. Achei que tivesse perdido o que quer que tenha sido entre nós. Mas ai de alguma maneira voltou e eu queria que você soubesse.

Silencio. Ela não sabia o que responder. Suas mãos estavam geladas. No outro cômodo ela ouvia o som de panelas sendo remexidas na cozinha. Fechou a porta. O que ela mais queria era o silencio. E o doce som daquela voz em seus ouvidos novamente.
- Desculpa. Não deveria ter ligado.

I didn't mean to waste your time
So I'll fall back in line
But i'm warning you we're growing up

Ela não havia dito nada. Apenas ouvia. Mas achou que deveria dizer algo. Depois de um longo suspiro.
- Eu também. Sempre.

E o silencio já não era desconfortável. Nunca foi.


terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Dr. Malinowski

E a noite é sempre envolvente aqui. Sempre. Quando ela chega é como se o tempo parasse. A noite parece não avançar. Estamos sempre à meia luz. Há sempre uma escuridão e um ponto de claridade. O perfume dela sempre me inebria. É como se me acolhesse e representasse a sua presença.

- Como vais embora?
- Não sei. Um táxi talvez. Aqui não passa ônibus.
- Onde moras? Um táxi dividido em duas sai mais barato.


Acho que não precisei dizer mais nada depois disso. O silencio no escuro. No fundo ainda ouvia as conversas paralelas e a música tocando. A porta abriu. Ouvi claramente a voz de alguns amigos. Estavam lá dentro, bebendo. Por reflexo, ela saiu do meu lado, fez menção de atender o celular. A pessoa da porta me olhou, trocou umas palavras e entrou novamente. Queria saber se eu havia visto o Beto. Eu disse que não. E tornei a olhar para ela novamente, afastada, acendendo um cigarro. Nervosa, eu acredito. Eu também estava. Depois de tantos olhares, brincadeiras e afastamentos. O comportamento ambíguo, ambíguo ainda era? Era necessário, talvez. O desejo não devia haver. Havia tantos problemas. E o táxi.

Fui primeiro. Abri a porta. E a chamei. Achei que não fosse entrar. Juro que ela deve ter pensado muito no que fazer. Pareceu uma eternidade. Algo atraía, puxava. De um lado o proibido e o errado; de outro o desejo, a redenção, a liberdade. E ela entrou e eu sentei ao seu lado. Sua mão tocou a minha enquanto ela indicava ao motorista por onde seguir. Não me importei. O táxi chegou de repente. Ela pagou. Descemos.

Eu não vi o caminho. Só via a escuridão da noite e o barulho de suas chaves abrindo o portão de um edifício. Se o visse novamente, não saberia descrevê-lo. Eu não percebi o tempo passar e não sabia o que fazer. Ela pelo jeito também não. As chaves caíram no chão. Ela estava nervosa. Tanto quanto eu. E ela não falava. Mas sorria.

O portão abriu logo o elevador subiu. Não sei onde estava nem que andar era. Eu não falava, ela não falava. Mas havia tanto no ar. Tanta tensão, tanto desejo. A porta se fechou atrás das minhas costas. A luz se acendeu e me dei por conta de onde estava. Seus olhos me fitavam. Profundamente. Não era momento pra racionalizar. Se isso ocorresse, eu voltaria atrás, desceria pelo elevador e caminharia na escuridão da madrugada em busca de ar fresco. Mas, no fundo, dificilmente eu faria isso. E penso que ela pensava a mesma coisa.

Me senti como se fosse a primeira vez. Eu não sabia bem o que fazer ou onde colocar minhas mãos. Mas a estranheza deixou de ser estranha em pouco tempo. Nossos corpos sabiam o que fazer e o que procurar. Definitivamente eu queria conhecer aquela pele suave e aqueles suaves suspiros mais do que uma vez.